Autobiografia de Snowden detalha como os EUA espionaram o mundo
Esqueça os equipamentos mirabolantes dos filmes do agente secreto James Bond. Hoje em dia, a principal arma de espionagem é o smartphone, computador ou tablet em que você está lendo este texto.
Parece obra de ficção, mas não é. Se hoje nós sabemos que as nossas comunicações digitais podem estar sendo monitoradas a todo instante, isso se deve, em parte, ao esforço de Edward Snowden, ex-agente da NSA (Agência de Segurança Nacional americana) que veio a público em 2013 para delatar um sistema de vigilância em massa que ajudara a montar nos anos anteriores.
Os detalhes do escândalo de espionagem que mudou para sempre nossa relação com a tecnologia ocupam as páginas de “Eterna Vigilância”, a recém-publicada autobiografia de Snowden. A versão em português foi lançada pela editora Planeta (o título original é “Permanent Record”).
“Nas profundezas de um túnel sob uma plantação de abacaxis –uma antiga fábrica de aviões da época de Pearl Harbor–, eu me sentava diante de um terminal do qual tinha acesso praticamente ilimitado às comunicações de quase todos os homens, mulheres e crianças da Terra que fizessem uma ligação ou usassem um computador”, conta Snowden na obra, descrevendo o tempo em que trabalhou em uma base secreta no Havaí.
O livro conta a trajetória do garoto nerd que cresceu na cidade de Elizabeth City, na Carolina do Norte, e passou trabalhar como freelancer para a NSA e a CIA (serviço secreto americano), até que sua decisão de vazar segredos de Estado o forçou a viver no exílio.
Nascido em 1983, Snowden faz parte de uma geração que acompanhou a internet e os computadores em sua fase de crescimento. Pessoas como ele foram moldadas pelas novas tecnologias ao passo em que ajudavam a desenvolvê-las.
No livro, Snowden relembra o passado idílico do mundo interconectado que oferecia oportunidades infinitas. Ele lamenta que o anonimato online tenha sido substituído pela perda quase completa de privacidade, e que a colaboração voluntária entre indivíduos que marcava os primórdios da internet tenha dado lugar a uma cultura digital pautada pelos interesses comerciais de uns poucos conglomerados de mídia.
É neste abismo entre o sonho do que a internet poderia ter sido e o pesadelo em que ela se tornou que reside a frustação de Snowden, e que o motivou a pôr tudo em risco quando decidiu revelar os segredos da NSA.
PRIVACIDADE IMPOSSÍVEL
As informações trazidas à luz do dia por Snowden mostram como o governo dos Estados Unidos, sob a justificativa de combater seus inimigos após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, criou um vasto sistema de coleta de informações pessoais que tornava a privacidade no mundo digital praticamente impossível.
De certa forma, o ato rebelde de Snowden provocou uma crise de identidade nos Estados Unidos, que até então acreditavam ser o guardião da democracia e das liberdades individuais.
O escândalo deixou claro que a maior potência do mundo havia adotado –à revelia da ordem legal e da vontade de seus cidadãos– práticas de espionagem em massa comuns a regimes autoritários, como a China, a União Soviética e a Alemanha nazista.
“Deixa de ser, efetivamente, uma democracia todo governo eleito que dependa da vigilância para manter o controle [de seus cidadãos]”, escreve Snowden. Para o autor, as autoridades de inteligência dos Estados Unidos “hackearam a Constituição”.
O escândalo revelado por Snowden já foi abordado em outras ocasiões, como o livro “Sem Lugar Para Se Esconder”, do jornalista americano Glenn Greenwald, e o documentário “Citizenfour”, da cineasta Laura Poitras (Greenwald e Poitras são também os autores das primeiras reportagens sobre os documentos vazados da NSA por Snowden).
Já “Eterna Vigilância” é a primeira versão do caso contada por seu protagonista. Embora não traga revelações bombásticas, o livro oferece um relato detalhado sobre o funcionamento das agências de inteligência mais poderosas do mundo a partir do ponto de vista de um ex-funcionário que decidiu virar delator.
A delação de Snowden inaugurou um debate global necessário sobre as ameaças às liberdades individuais na era da informação, dando impulso a ferramentas de criptografia de mensagens e a avanços legislativos como o GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), implementado pela União Europeia em 2018.
Por outro lado, desde que as revelações de Snowden vieram à tona, em 2013, as redes sociais se tornaram um lugar mais sombrio, em que nossos dados pessoais passaram a ser explorados por corporações privadas e campanhas políticas interessadas em analisar e influenciar o comportamento de milhões de usuários.
INTERESSE PÚBLICO
Mais de seis anos após ter vindo a público, Snowden segue exilado em uma terra que jamais escolheu, a Rússia, sem saber se e quando poderá voltar em segurança a seu país de origem. Longe de reconhecer qualquer interesse público que tenha motivado sua delação, os Estados Unidos seguem tratando Snowden como um traidor que colocou a segurança da nação em risco.
Lançado na terça-feira (17), “Eterna Vigilância” já provocou reações das autoridades americanas. O Departamento de Justiça entrou, no mesmo dia, com uma ação para reter todos os lucros que resultem da publicação do livro –para o governo americano, Snowden violou as regras da CIA e da NSA, que exigem que seus ex-funcionários submetam suas obras à revisão prévia.
O livro é particularmente interessante para o público brasileiro: entre as revelações de Snowden estava a informação de que o governo americano vinha rastreando as comunicações da então presidente Dilma Rousseff, o que gerou uma crise diplomática sem precedentes entre Brasília e Washington.
Além disso, o caso Snowden atravessa questões importantes debatidas atualmente no Brasil, dos riscos representados por autoridades não eleitas que violam prerrogativas elementares do estado de Direito em nome de combater um mal maior, à legitimidade das ações de hackers e jornalistas que expõem essas violações.
Considere-se Snowden um herói ou um traidor, “Eterna Vigilância” é fundamental para compreender um dos personagens mais interessantes deste início de século, e para entender o potencial criativo e destrutivo das novas tecnologias de comunicação.