Com epílogo agonizante, brexit deixará sequelas duradouras no Reino Unido

O dia 29 de março de 2019 era o horizonte que o Reino Unido tinha diante de si desde o início do processo de saída da União Europeia (UE), aprovado por margem apertada no plebiscito de junho de 2016. Esta sexta-feira era a data marcada para o divórcio entre o Reino Unido e o bloco regional, mas a crise política forçou as partes a adiar o brexit em algumas semanas, no mínimo.

Nos últimos meses, a primera-ministra Theresa May viu derreter seu capital político, e a política conservadora já anunciou que deixará o cargo precocemente após conduzir a saída da UE. Em mais de uma ocasião, May foi incapaz de conquistar uma maioria no Parlamento britânico para fazer avançar o acordo sobre o brexit que ela negociou por mais de dois anos com as autoridades de Bruxelas.

Em vez buscar um plano B, May tentou uma cartada derradeira ao apresentar seu acordo para o brexit em uma terceira votação nesta sexta-feira (29). Conforme era previsto, a primeira-ministra foi derrotada por 344 votos a 286, em mais uma demonstração de seu talento inigualável em insistir em erros do passado.

Os parlamentares britânicos bem que tentaram assumir o controle do processo de saída da UE ao conduzirem, na quarta-feira (27), uma série de votações indicativas –sem efeito legal, portanto— sobre alternativas para o presente impasse político. No entanto, todas as oito opções disponíveis, desde uma saída litigiosa até a suspensão do brexit, passando pela convocação de um novo plebiscito, fracassaram em angariar o apoio da maioria dos parlamentares.

Assim, o epílogo do brexit é uma narrativa agonizante e tediosa, e ninguém sabe ao certo qual será o final da história. Poderemos assistir ao Reino Unido abandonando a UE sem um acordo já em 12 de abril, com consequências econômicas desastrosas para o país. Também não está descartado um adiamento prolongado do brexit, com um novo governo que possa recomeçar o processo de negociação com o bloco regional.

E os debates sobre o brexit não terminam quando o Reino Unido finalmente assinar os papéis do divórcio, pois ainda serão necessários anos de negociação sobre os termos da futura relação com a UE. A maior certeza até aqui é que o brexit deixará sequelas profundas no sistema político e no estado da união do Reino Unido.

A primeira-ministra britânica, Theresa May(Crédito: Oli Scarff – 12.dez.2018/AFP)

POLÍTICA EM DESCRÉDITO

O brexit conta a história da implosão em câmera lenta do Partido Conservador, principal força política do Reino Unido. O plebiscito sobre a permanência na UE não passou de uma aventura populista fracassada do então primeiro-ministro David Cameron, dando poder inédito à ala eurocética da legenda.

Quando assumiu a responsabilidade pela bagunça, May resolveu negociar exclusivamente com os conservadores que queriam uma saída litigiosa da UE, ignorando as demandas da oposição trabalhista e dos 48% da população que desejavam permanecer no bloco regional. Não satisfeitos, os rebeldes conservadores rejeitaram o plano para a saída da UE apresentado por May, impondo ao governo a pior derrota na história do Parlamento em janeiro.

Por outro lado, a posição vacilante da liderança do Partido Trabalhista –que ora sinalizava apoio a um divórcio mais suave, ora defendia a realização de um segundo plebiscito para revogar o brexit– não ajudou em nada. O líder esquerdista do partido, Jeremy Corbyn, havia se qualificado para suceder a May ao obter bons resultados na eleição parlamentar de 2017. No entanto, ao escolher ficar em cima do muro, com medo de perder votos de “leavers” e “remainers”, Corbyn corre o risco de sair com as mãos abandando.

Há algumas semanas, políticos trabalhistas e conservadores abandonaram seus partidos para formar o centrista Grupo Independente. Porém, a iniciativa parece fadada à irrelevância, visto que fracassou em obter o apoio de mais que uma dúzia de parlamentares.

O que resulta da divisão irreparável dos partidos britânicos é o descrédito profundo da política. É sintomático que as principais forças políticas do Reino Unido, à direita e à esquerda, tenham feito vista grossa à gigantesca manifestação por um segundo plebiscito, realizada no sábado (23) –os organizadores contaram mais de um milhão de participantes nas ruas de Londres, no que já é considerado o maior protesto da história do país.

De fato, a maior parte dos eleitores –trabalhistas ou conservadores, tenham eles votado a favor ou contra a saída da UE em 2016– vê o governo e o Parlamento com desgosto. Este caldo de insatisfação pode propiciar o fortalecimento de lideranças populistas de extrema direita, como se viu nos últimos anos em outros países europeus, notadamente na Itália e na França.

UNIÃO EM RISCO

Para além da barafunda política provocada pelo brexit, é a própria integridade territorial do Reino Unido que está em jogo. A estratégia adotada por May para conduzir a saída da UE acabou alienando os eleitorados da Escócia e da Irlanda do Norte, que votaram pela permanência no bloco regional.

Diante das perspectivas de um brexit desordenado, nacionalistas escoceses vêm uma oportunidade para conquistar a independência em relação ao governo de Londres. Os separatistas saíram derrotados de uma votação sobre o tema em 2014, mas pesquisas de opinião indicam que o resultado lhes seria favorável caso um novo plebiscito seja organizado.

A situação mais preocupante, porém, é a da Irlanda do Norte. A derrocada do brexit ameaça reimpor controles alfandegários na fronteira com a República da Irlanda contra a vontade dos habitantes do local. A liberdade de movimento na ilha é um dos pilares do Acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998, que pôs fim a três décadas de conflito sangrento entre separatistas e unionistas na Irlanda do Norte.

Para além da questão fronteiriça, May desqualificou o governo de Londres enquanto intermediário neutro entre as forças políticas da Irlanda do Norte ao convidar os unionistas do DUP (Democratic Unionist Party) para compor sua coalizão no Parlamento após o resultado pífio de seu partido na eleição de 2017. Está claro que nenhuma das forças políticas norte-irlandesas pretende voltar às armas, mas o ressurgimento das condições políticas que deram início à violência na região há meio século é um sinal de alerta.

As rachaduras provocadas pelo brexit na união são evidentes, e é possível que ao longo da próxima década vejamos um processo de decomposição do Reino Unido com a saída da Escócia e a reunificação da Irlanda. A relevância histórica deste processo não deve ser subestimada: a última vez em que o governo de Londres perdeu o controle sobre terras nas ilhas britânicas foi na independência da Irlanda, há quase um século.

O fato é que os políticos britânicos pró-brexit, ao fazerem promessas irrealizáveis e estimularem os piores sentimentos nacionalistas, mergulharam o Reino Unido em crise permanente. Qualquer que seja o desfecho do brexit, o país estará mais fraco e dividido que nunca.

Atenção: este post foi atualizado às 11h56 para incluir o resultado da última votação no Parlamento britânico.