Saiba o que é intervenção militar, cogitada como solução para a Venezuela

Diante do agravamento da crise humanitária na Venezuela, atores internacionais passaram a cogitar uma intervenção militar para derrubar o ditador Nicolás Maduro e restabelecer a ordem no país.

Com a economia em estado crítico, a Venezuela enfrenta o desabastecimento de alimentos e medicamentos. A situação levou 2,3 milhões de pessoas, cerca de 5% da população, a fugir do país desde 2014.

No fim de semana, o secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), Luis Almagro, afirmou que não se deve descartar a via da “intervenção militar” para pôr fim às violações dos direitos humanos promovidas pelo regime chavista –a ideia foi rejeitada por muitos países da região, mas recebeu o respaldo do embaixador da Colômbia em Washington. Além disso, recentemente se noticiou que o governo dos Estados Unidos se reuniu com militares venezuelanos para debater um possível golpe no país.

Mas, afinal, o que é uma intervenção militar?

O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, durante visita no sábado (15) a Cúcuta, na Colômbia (Crédito: Carlos Eduardo Ramirez/Reuters)

Intervenção é uma prática comum nas relações internacionais

O uso da força para interferir nos assuntos internos de outros países é uma prática comum nas relações internacionais, mas carrega consigo uma tensão permanente com o princípio da soberania. Se os Estados têm liberdade para fazer o que quiserem dentro de suas fronteiras, o que justificaria o direito de um Estado interferir em outro?

Historicamente, o direito à intervenção é invocado por Estados para coibir situações que veem como ameaças à segurança nacional ou à ordem internacional. Entretanto, a definição dessas ameaças muitas vezes está aberta a interpretações, de modo que o princípio da autodeterminação costuma prevalecer sobre o direito à intervenção.

Desse modo, o entendimento em torno do direito à intervenção evoluiu, limitando a possibilidade do uso da força a situações específicas. Após o fim da Segunda Guerra (1939-1945) e o trauma do Holocausto, criou-se um consenso de que o princípio da soberania não significa que um Estado pode maltratar sua população. Assim, a proteção dos direitos humanos passou ser uma justificativa plausível para intervenções.

Menina olha para uma vala comum, onde dezenas de corpos foram colocados, vítimas genocídio por extremistas hutus, em Ruanda
O genocídio em Ruanda, em 1994, levou a uma intervenção da ONU no país (Crédito: Corinne Dufka – 20.jul.1994/Reuters)

Exemplos de intervenção humanitária

O tema da intervenção humanitária passou a ocupar um lugar de destaque na agenda internacional a partir dos anos 1990. Com o fim da Guerra Fria, o temor de uma guerra nuclear iminente deu lugar à preocupação com crises humanitárias ao redor do globo, levando as potências mundiais a intervirem em diferentes países com a justificativa de proteger civis.

Com maior ou menor grau de sucesso, intervenções humanitárias ocorreram no Curdistão iraquiano (1991), na Somália (1992-95), na Bósnia (1992-95), em Ruanda (1994), no Haiti (1994) e no Kosovo (1999). Essas experiências ajudaram a requalificar o conceito de soberania em favor da necessidade de prevenir violações massivas dos direitos humanos.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, a prática da intervenção humanitária entrou em declínio, dando lugar à doutrina da guerra ao terror. Na visão das grandes potências, o terrorismo era uma ameaça muito maior à segurança internacional do que as violações de direitos humanos. Assim se deram as invasões dos Estados Unidos ao Afeganistão, em 2001, e ao Iraque, em 2003 –a administração de George W. Bush até tentou convencer outros países que a derrubada do ditador Saddam Hussein levaria à proteção de civis, mas as tais armas de destruição em massa do ditador iraquiano nunca foram encontradas.

Diplomatas participam de votação no Conselho de Segurança da ONU em Nova York, EUA, em 2017
O Conselho de Segurança da ONU é responsável por autorizar intervenções humanitárias (Crédito: Stephanie Keith – 11.set.2017/Reuters)

O conceito de “responsabilidade de proteger”

Apesar do declínio da prática da intervenção humanitária nos anos 2000, a comunidade internacional aprofundou a definição jurídica sobre a intervenção. Em 2005, os países membros da ONU (Organização das Nações Unidas) adotaram, por consenso, o paradigma da “responsabilidade de proteger” (responsability to protect, ou R2P).

O princípio do R2P estabelece uma série de responsabilidades compartilhadas por atores nacionais e internacionais a fim de proteger populações de genocídio, limpeza étnica e outros crimes contra a humanidade. Quando um Estado falhasse em respeitar os direitos humanos de sua população, caberia à comunidade internacional intervir por meio de ação multilateral. Assim, o Conselho de Segurança da ONU poderia autorizar intervenções humanitárias em resposta a situações em que houvesse “ameaça à paz, violação da paz ou atos de agressão”.

Sob o manto do R2P, a ONU autorizou intervenções humanitárias em resposta à novos conflitos na África Subsaariana e nos países atingidos pela Primavera Árabe. Tropas internacionais foram enviadas para países como Costa do Marfim (2011), Líbia (2011) e Mali (2012–13) –a intervenção da Otan (aliança militar ocidental) na Líbia, no entanto, foi criticada por causar mais sofrimento à população local e por servir de pretexto para a derrubada do ditador Muammar Gaddafi, violando o mandato concedido pela ONU.

Dessa forma, pode-se dizer que o debate sobre a intervenção militar evoluiu nas últimas décadas no sentido de criar mecanismos institucionais para proteger populações em risco e de fortalecer a autoridade dos Estados nacionais como meio de promover os direitos humanos. No entanto, a institucionalização da intervenção humanitária por meio da adoção do R2P não garante o sucesso de operações de paz, como atesta a experiência da Líbia, nem oferece segurança para todos os civis em risco, vide a inação da comunidade internacional diante da guerra civil na Síria e da limpeza étnica da minoria rohingya em Mianmar.

Como fica a Venezuela?

A opção pela intervenção militar para resolver a situação na Venezuela, ventilada pelo secretário-geral da OEA, enfrentaria uma série de obstáculos.

Em primeiro lugar, seria necessário identificar no regime de Nicolás Maduro uma clara ameaça à segurança internacional. Além disso, para que ocorra na legalidade, segundo o princípio do R2P, uma eventual intervenção precisaria ser aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. Por fim, o rechaço do Grupo de Lima –composto por 11 países da região, incluindo o Brasil— à declaração de Almagro sinaliza a falta de disposição de atores relevantes em embarcar em uma ação multilateral.